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tudo que eu gosto de fazer me dá tendinite

dor nas articulações como metáfora para dor nas articulações.

É domingo e eu estou pensando em trabalho.

(Pausa aqui para dizer, né. Primeiramente bom dia, boa tarde, e quiçá boa noite, para os amigos e inimigos e pessoas que se inscreveram nesta newsletter e imediatamente depois de clicar Inscrever esqueceram que tinham se escrito. Eu também sou assim. Vai ficar tudo bem.)

É domingo e eu estou pensando em trabalho. Uma frase que trará surpresa para 0,5% das pessoas lendo isso aqui que me conhecem de outros carnavais. Tal qual Sísifo com o seu crossfit amaldiçoado, em todos os níveis, incluindo o físico, eu estou sempre pensando em trabalho. E sentindo os efeitos de trabalhar.

O que é obviamente um pesadelo. Urgente o fim da prisão de carne que somos obrigados a ocupar, faz-se necessária a ascensão a uma forma de existência que transcenda o físico, etc. Mas enquanto não chega a coletividade de nuvens conscientes de Asimov1 , eu penso em trabalho e no fato de que tudo que eu sei fazer está me matando aos pouquinhos.

1 Em algum conto de Robot Dreams, salvo engano. Lembro que me deixou perturbada por dias quando eu era adolescente.

Tudo Que Eu Amo Causa Síndrome do Túnel Cárpico

Na história que eu estou escrevendo agora (que no momento não é nem livro e nem novela, mas uma terceira coisa ainda sem nome), uma parte significativa do enredo2 gira em torno de uma das protagonistas se sentir desconectada do seu trabalho, a ponto de isso fisicamente afetar o mundo em que ela vive. É uma não-novela-não-livro sobre magia e pássaros gigantes e sobre como fazer coisas é uma forma de body horror (ou terror que mexe com corpo e fluidos e entranhas, que causa destruição e/ou transformações irreversíveis a esse corpo e à pessoa que o ocupa ou por ele é possuída.)

2 Enredo é uma palavra forte para uma coisa em primeiro rascunho.

Boa parte dessa história foi planejada, e está sendo escrita, enquanto eu sinto algum tipo de dor. No braço e nas mãos, principalmente, mas também no pescoço, na cabeça. Nenhuma dessas dores é estranha pra mim: grande parte das mulheres da família é professora, e eu aprendi sobre tendinite e articulações ainda bem pequena, ao mesmo tempo que aprendia sobre greve. O céu é azul, o mar é uma construção social, trabalho manual dói. É só mais um fato irrefutável da vida. Mas apesar disso, a despeito dessa familiaridade, essas dores (braço, mão, pescoço, inexplicavelmente joelho) ainda me causam um certo terror: são os tendões e ossos e músculos dizendo olá, é domingo, e trabalhar está te destruindo aos pouquinhos.

Normal.

Na história impossível-de-classificar, o trabalho não é exatamente uma maldição, mas as condições em que ele é exercido (para quem, de que jeito, com quais restrições) fazem com que ele se torne uma forma de destino ruim, um vai e vem de apatia diária, aparentemente inescapável. E estar isolada de outras pessoas fazendo o mesmo tipo de trabalho só piora tudo para a narradora. Existe um motivo, afinal, por que tantos filmes de terror acabam sendo sobre uma pessoa isolada sofrendo sozinha: se tem gente perto vocês podem se juntar e descer o pau no Jason juntos. (Organizando tudo se ajeita, até uma fuga de Silent Hill. Talvez.)

Cassandra, a gata com nome de profetisa e de morcega, dormindo em uma manta que eu tricotei

Eu passei boa parte dos últimos três anos trabalhando com outras pessoas todos os dias. Reclamando das mesmas coisas, me vendo e me revendo no trabalho dos meus colegas. Tendo plano de saúde. Voltar à lógica do trabalho solitário (freelancer, CEO de MEI, escolha o título de nobreza que você preferir) e da precariedade premium (eu posso, tecnicamente, voltar à fisioterapia para essas dores todas, se eu acumular uns 5 trabalhos no mesmo mês) me fez pensar muito em como essa configuração específica de vida faz a vida encurtar. Tudo que eu gosto de fazer me dá tendinite, e tudo que eu gosto de fazer, do jeito que eu sou obrigada a fazer essas coisas (emitindo NF, acumulando funções, ignorando mão, braço, pescoço, cabeça) me aliena de mim.

Do final de 2023 para cá eu escrevi um livro, ilustrei um livro, publiquei um livro, salvei esse mesmo livro de ser mordido por uma das minhas gatas (anti livros). Nesse meio tempo eu também passei por uma demissão em massa e tive que aprender a usar o sistema de nota fiscal do governo federal. Assim como a narradora da minha história que-é-uma-romantasia-tecnicamente, eu tive que me adaptar a um modo de trabalho que me causa uma estranheza, física e mental, quase que constante. Pode ser mais tranquilo, sensorialmente falando, trabalhar sozinha, mas é também algo que causa agonia. Não seria mais fácil para Sísifo carregar o paralelepípedo ladeira acima se ele tivesse ajuda? O que é ser prestador de serviço? Quem são os meus colegas de trabalho quando o trabalho nos força a competir o tempo inteiro uns com os outros? Quem se beneficia com o fato de o sistema de NF do governo federal não ser capaz de salvar rascunho?

Como eu vou envelhecer nesse corpo que é um CNPJ?

“Como é possível, sob tais condições, que a classe trabalhadora seja saudável tenha longevidade? O que mais se pode esperar além de uma mortalidade excessiva, uma série contínua de epidemias, uma deterioração progressiva dos corpos da população trabalhadora?” (Revoltada que Engels escreveu isso com 25 anos!)

Eu não sei se existe uma resposta satisfatória para essas perguntas. Ou pelo menos nenhuma resposta que seja simples. Nos últimos tempos eu tenho voltado à ficção especulativa para tentar pensar essas questões. “Severance” foi uma dessas obras que me cutucou onde dói (o vídeo ensaio definitivo sobre a série, por orathiago, aqui) e que me fez pensar não só nos horrores de ocupar um corpo que trabalha e que se aliena de si mesmo enquanto trabalha, mas no retorno ao corpo que existe junto de outras pessoas, e que se liberta dessa alienação por estar junto de outras pessoas (se todo mundo se organizar, talvez não dê pra matar o carinha de Jogos Mortais em um só golpe, mas pelo menos dá pra arrancar um pedacinho dele de cada vez.)

Tudo que eu gosto de fazer me dá tendinite. Eu trabalho para viver sem saber se vou conseguir viver com esse trabalho sempre. Mas assim como a minha protagonista do não-livro-talvez-livro, nos piores dias, nos domingos em que eu estou pensando em trabalho, quando me doem cabeça e mãos e braço e inexplicavelmente pés, o que me faz voltar ao meu corpo (de gente mesmo, não de CNPJ) é pensar que ele não dói sozinho.

Aleatoriedades

  • Nesse último dia de mês do orgulho (julho, como todos sabem, é o mês da ira) uma recomendação de série: Love For Love’s Sake é, à primeira vista, uma espécie de Heartstopper indie com uma estrutura meio isekai (o protagonista está preso em um jogo e precisa salvar um dos personagens para “ganhar”), mas acaba entrando em questões bem mais profundas de pertencimento e depressão e identidade no decorrer dos episódios, brincando um pouco com a própria estrutura da narrativa. Terminei de assistir com o coração quentinho.

  • O Legado das Águas, de Sofia Soter, já está no mundo. Tive o privilégio de fazer o projeto da capa e as ilustrações de apoio do debut de Sofia, e amo cada uma das criança da Totalmente Normal cidade de Catarina.

  • But Not Too Bold, de Hache Pueyo, já está em situação de pré-venda e eu mal posso esperar para tê-lo em mãos e ficar coberta de teias de aranha, como foi profetizado.

  • A Common Thread Press é uma editora estadunidense que publica livros sobre trabalhos têxteis e as pessoas que os fazem.

  • Autor negro, catálogo branco, tese de Gabriela da Costa Silva, investiga a presença de autores negros no catálogo de 15 editoras não-negras e tradicionais do eixo Rio-São Paulo. Leitura essencial para quem trabalha no mercado editorial.

  • No dia 02/07 às 14h, o MTST de São Paulo vai realizar um ato na Câmara de Vereadores da cidade contra o PL da Fome, que impõe multa a quem doar comida na cidade. O Cozinhas Solidárias é um dos projetos que está na linha de frente desse protesto.